9.11.07

UMA MULHER SEM ROSTO


Por mais que pensemos e digamos que já sabemos muito ou alguma coisa sobre as relações humanas é na vivência com os outros que vamos conhecendo e aprendendo a reconhecer a criatura que fisiologicamente é nossa semelhante.

Que pensar da mulher que considerou um homem como “um Áries com a energia e a coragem do deus Marte” e em segredo com a sua personalidade em desagregação crê que o ama, mas tem medo de mostrar-lhe o rosto e os seus olhos?

Será que ela é uma esquizóide com vergonha da sua cara? Que é uma embuste? Que é uma fraude virtual? Que afinal não existe com o nome que diz ter? Que vive no horror de viver e se esconde de si e dos outros com quem se assume e gostaria de conviver?

Ela é um “mistério” de convivência humana que deixou de o ser quando comecei a escrever este comentário baseado numa história que me contaram, a qual aqui deixo como mais uma experiência que pode surgir na vida de outras pessoas, mesmo que a “misteriosa” criatura seja toda dedicada a Deus, santos e rezas, missas e à catequização de crianças às quais espero que ela não lhes tenha ensinado a esconder o rosto e os olhos que são a expressão da nossa alma e do nosso Eu exteriorizável através de um olhar.

A propósito dos olhos e do olhar, Anselmo Borges, padre da Igreja Católica, que também é teólogo e professor de Teologia, escreveu no jornal DN (Lisboa-Portugal):
“Não é dos olhos que se trata. O mistério é o olhar. Um dia terão perguntado a Hegel o que se manifesta e vê num olhar. E ele respondeu: "O abismo do mundo”. Num olhar, o que há é alguém que vem à janela de si e nos visita. Também por isso, para tornar alguém anónimo, venda-se-lhe os olhos. Faz-se o mesmo a um condenado à morte, porque é intolerável o seu olhar. Até para nós próprios somos por vezes terrivelmente estranhos. Quem nunca se surpreendeu ao olhar para o seu próprio olhar no espelho? "Quem é esse ou isso que me vê, desde o abismo?"

Essa estranheza assalta-nos até no olhar de um animal: um cão velho e abandonado que nos olha não nos deixa indiferentes. Mas é sobretudo o olhar de alguém que é perturbador. Ele há o olhar triste. O olhar meigo. O olhar arrogante. O olhar do terror. O olhar da súplica. O olhar de gozo. O olhar que baila num sorriso. O olhar concentrado. O olhar disperso. O olhar da aceitação. O olhar do desprezo. O olhar compassivo. O olhar do desespero. O olhar sedutor. O olhar envergonhado. O olhar da despedida final para sempre. O olhar morto, que já não é olhar.
O olhar é a presença misteriosa de alguém, que ao mesmo tempo se desvela e se vela. Já ao nível do tal cão velho e abandonado pode erguer-se o sobressalto da pergunta: o que é e como é ser cão? Mas é uma sensação de abismo, um belo dia, precisamente perante o olhar de alguém, ficarmos paralisados com a interrogação: o que é ser alguém outro? Porque a outra pessoa - o outro homem ou a outra mulher - não é simplesmente outro eu, mas um eu outro. Explicitando: o que é e como é ser o Juan ou a Eunice, viver-se a si mesmo por dentro como o Juan ou a Eunice? Nunca saberei. E como é o mundo visto a partir deles? E como é que ele ou ela me vêem? O quê e quem sou eu realmente para eles, a partir do seu olhar?
E como é que eu sei que há o outro, não enquanto outro eu -ainda no prolongamento de mim-, mas precisamente como um eu outro, sujeito inapreensível?

Sartre teorizou que esse saber é dado de modo indubitável no sentimento da vergonha. E dá o exemplo de alguém que, num hotel, está, concentrado, a espreitar pelo buraco da fechadura. Ouve passos no corredor. Então, no sentimento paralisante da vergonha, ao ficar objectivado pelo olhar do outro a quem os passos pertencem, sabe que há um sujeito que não é ele. Ele é objecto para esse sujeito que o vê: é visto.
Se a única ou a principal relação com o outro fosse a da vergonha, não se aguentava viver, porque "o inferno" seriam "os outros". Sartre cortou relações com Deus por causa do seu olhar horrorosamente indiscreto. É certo que só vimos a nós pela mediação do outro. Sem outros eus, enquanto tus, não há eu.

Mas será que a única ou mesmo a principal relação com o outro é a da vergonha?

Entre mim e o outro há uma tensão dialéctica: de distância e proximidade. Afinal, a relação com o outro pode ser de rivalidade ou de aliança, de destruição ou de criação. Então, precisamente no olhar do outro, enquanto próximo inobjectivável, irredutível, de que não posso dispor, pode revelar-se o apelo misterioso da proximidade infinita…”.

Lida a reflexão de Anselmo Borges, podemos crer que não devemos ter medo do rosto e dos olhos do Eu nem do Outro, tu de ti e eu de mim, nós Deles e todos de Nós, porque a nossa cara e os nossos olhos são a nossa imagem natural e passível de ser alterada por cirurgia reconstrutiva e reparadora (ou pela maquilhagem que nos leva a afirmar que “já não há mulheres feias”), inclusive os olhos que até os podemos fazer “mudar” de cor com lentes adaptáveis e existentes no mercado e serviços ópticos.

Quem não conhece a cara dos desengraçados aborígenes das tribos incivilizadas da Micronésia, Melanésia, Australásia, África Equatorial e Amazónia? Até eles não têm medo de mostrar os seus rostos feios e medonhos, porque entretanto descobriram que dentro das pessoas que não são bonitas pode haver muita humanidade, beleza e amor.

Nem Jesus de Nazaré, que tinha cara de afro-asiático e, por ser feio, o Catolicismo mandou pintá-Lo com um rosto de europeu de olhos azuis e cabelos louros e compridos.

Nem a Madre Teresa de Calcutá, uma santa que foi pessoa, viveu e ficou conhecida por dar o autêntico Amor Cristão aos mais pobres e aos que mais sofriam, feia como a noite num bairro miserável da Índia e nunca teve medo de mostrar o seu rosto ao mundo…
Texto: MARQUES PEREIRA
Foto: A.N.I.
Webmaster: Paula Medeiros

Sem comentários: